Relatos de um processo – Brasília, mês de abril

a provocação

“A ciateatroautônomo vem, nos últimos anos, mais especificamente a partir de “nu de mim mesmo”, trabalhando sobre a possibilidade da constituição de “lugares”, ou seja, da instalação de territórios afetivos aos quais a cena dá acesso. Na “série 21.”, por exemplo, trabalho mais recente da companhia, tais possibilidades se davam ora a partir da proposta de construção de uma cidade imaginária por intermédio do cruzamento dos registros pessoais levados pelos espectadores (…); ora através da invenção de uma memória – independentemente de seu aspecto ficcional – que era provisoriamente atribuída a um percurso urbano. Nessa direção, a ciateatroautônomo reencontrou o romance 100 Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez. Esta obra constrói um “lugar” de múltiplas afecções – tempos, espaços, diferenças, afetos. Nossa proposta é: que sejam eleitas alguma(s) das afecção(ões) presente(s) na obra, tais que possa(m) constituir “lugares”, e que com isso seja produzido o material.”

Dias depois outro e-mail, complementando:

“Ah, esqueci: seria legal, de certo modo, o material que vocês produzirem conter alguma “contaminação” do nosso trabalho.Nós, por aqui, tentaremos nos “apropriar”, em alguma medida, das construções de vocês.”

trechos extraídos do email encaminhado pela CIA DE TEATRO AUTÔNOMO para desenvolvimento da primeira provocação.

A partir dessa provocação, o grupo brasiliense Irmãos Guimarães elegeu um pequeno trecho do livro: o episódio que dá relevo à chegada de Rebeca que traz a Macondo a doença do sono. A consequência dessa doença é a gradativa perda de memória.

Contribuição Marquez

o trecho escolhido

“Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que havia de defendê-los, durante vários meses, das evasões da memória. Descobriu-a por acaso. (…) Um dia, estava procurando a pequena bigorna que utilizava para laminar os metais, e não se lembrou do seu nome. Seu pai lhe disse: tás. Aureliano escreveu o nome num papel que pregou com cola na base da bigorna: tás. Assim, ficou certo de não esquecê-lo no futuro. (…) Mas poucos dias depois descobriu que tinha dificuldade de se lembrar de quase todas as coisas do laboratório. Então marcou com o nome respectivo, de modo que bastava ler a inscrição para identificá-las. Quando seu pai lhe comunicou o seu pavor por ter-se esquecido até dos fatos mais impressionantes de sua infância, Aureliano lhe explicou o método, e José Arcádio Buendía o pôs em prática para toda a casa e mais tarde o impôs a todo o povoado. Com pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com o seu nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela. Foi ao curral e marcou os animais e plantas: vaca, cabrito, porco, galinha, aipim, bananeira. Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, percebeu que podia chegar um dia em que se reconhecessem as coisas pelas suas inscrições, mas não se recordasse a sua utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro que pendurou no cachaço da vaca era uma amostra exemplar da forma pela qual os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar contra o esquecimento: Esta é a vaca, tem-se que ordenhá-la todas as manhãs para que se produza o leite e o leite é preciso ferver para misturá-lo com o café e fazer café com leite. Assim, continuaram vivendo numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras, mas que haveria de fugir sem remédio quando esquecessem os valores da letra escrita”.

O Processo: proposicões,desvios e retomadas

o mês de abril

Após retomar a leitura de Marquez – motivador de pesquisas anteriores – Adriano sugere ao grupo o fragmento da insônia de Macondo; a partir dele, os intérpretes deveriam criar, individualmente, uma proposta pensando na “contaminação” possível pela ciateatroautônomo em seu discurso criativo. O grupo brasiliense, nas cenas apresentadas trouxe elementos muito pessoais, íntimos, focados na percepção de pontencialidade do depoimento pessoal à cena.

Sem quaisquer preocupações com uma dramaturgia acabada, uma segunda etapa foi pautada por estímulos dados pelo diretor, que acaba por se aproveitar dos traços comuns apresentados pelos atores em suas cenas, como a latente tentativa de retenção e catalogação da memória. Para instigar a construção de uma “biblioteca afetiva”, as investigações foram estimuladas por questões como aquilo que me serve de lembrança e como a perda da memória afeta meu cotidiano; A partir disso, o grupo desenvolve uma série de improvisos sobre a escuta do espaço, os estágios do esquecimento, chegando, por fim, as relações e fronteiras do outro em processo de apagamento.

Nessa etapa, aconteceram várias descobertas e abandonos. Como a proposta era com uma dramaturgia aberta, ou uma construção dramatúrgica diária, logo emergiu a necessidade de fechar, de definir uma cena ou uma situação dramática acabada, o que, àquela altura, interessava menos. Apresentar uma cena dramática parecia ao grupo menos desafiador naquele momento do que realmente expor a experiência. Então, assumida a mudança, os criadores revisitaram as primeiras propostas de cena realizadas no começo do trabalho tendo definido enfim como objeto criativo o processo.

As propostas

Cartografia

O próprio corpo como um quebra-cabeça gigante com minúsculas (e infinitas) peças; todas deviam ser nomeadas. Cada centímetro, cada ponto, cada cisco, cada célula traz uma informação e esta informação deve ser catalogada, registrada. Munido de cinco blocos de post-its (duas mil folhas) e uma caneta hidrocor preta, o trabalho era minucioso.

Primeiro, o óbvio… O nome: “Isto é uma camiseta”, “esta é a cabeça”, “pé”, “mão”, “calça”, “perna”, “pelos”, “suor”… É o que é! Como começam os personagens de Cem Anos de Solidão.

Em seguida, as informações adicionais, porém evidentes: “A camiseta é cinza”, “a calça é feita de jeans”, “este é o pé esquerdo”, “a perna se divide em canela, joelho e coxa”. A função, a cor, o material, a textura, o tamanho.

Com o passar do tempo, os dados foram ficando cada vez mais particulares: “A camiseta é cinza, mas é emprestada”, “a calça jeans foi um presente da mãe”, “este é o pé esquerdo porque o outro é o direito”. As informações foram se tornando menos objetivas e mais íntimas. A história por trás de cada cicatriz e tatuagem, o cheiro da camiseta emprestada, a recordação de que o cabelo era cinza como a camiseta, da dificuldade de saber qual é direita e qual é esquerda, de que a mancha branca era por falta de sol quando criança, como é comum esbarrar com o cotovelo, o momento em que surgiu a ideia de usar piercing, por quem o coração bate… Todos os dados. Dos mais superficiais aos mais profundos. Dos mais nítidos aos menos claros. O objetivo e o subjetivo. A memória real e a inventada. As marcas da infância, da adolescência, da vida adulta. As piadas internas. Os traumas. O quase daltonismo… Nada foi ignorado.

Não devia haver um espaço em branco. O corpo precisava ser inteiramente mapeado, por dentro e por fora. De cima a baixo. Como uma “biblioteca ambulante”. Impossível! Os post-its se descolam, quase que imediatamente, por causa do esforço que provoca suor que, em contato com a cola, não deixa que ele permaneça pregado. Quanto mais eu grudava, mais me esforçava, mais suava, menos eles grudavam. Impossível! Não havia como reter todas as informações, nem as recordações… O tempo as apaga, a cola não gruda… Era um Sísifo das recordações. Diego de León

Sonho?

A idéia do sonho como experiência de fluxo não linear e de cotidiano desorganizado estimularam o conteúdo criativo desta cena, vindo da discussão da cidade de Macondo e a “peste da insônia” trazida pela personagem Rebeca no clássico de Gabriel Garcia Marquez, Cem anos de Solidão.

Elegi um sonho breve e perturbador que tive há alguns meses, algo entre fevereiro e abril, não me lembro, onde a morte e minha rede de relações são postas com crueza e impacto; as lembranças que tenho são bastante dispersas com pormenores que celebram o episódio. Eu, entre amigos e cachorros, pedaços diferentes de uma história, o real e uma memória inventada, latidos que figuravam uma armadilha: a necessidade plural da minha morte. Personagem partido – resto e consciência –  um pedaço de carne que insistia em circular no mesmo eixo de tentativa, a reversão da narrativa, a sobrevivência.

No primeiro exercício de cena, peguei a câmera fotográfica velha de casa que pouco uso. Tive necessidade de registrar tudo; o lugar e as pessoas na sala de ensaio enquanto narrava o meu sonho. Tinha ali, uma feroz tentativa de registrar a memória do lugar e uma resistência de reter o instante, um lugar ou espaço que pudesse me reconhecer, algum vestígio que comportasse minha memória, a possibilidade de resistir. Usei meu sonho como incômodo; a partir desse material do inconsciente, encontrei um elo junto à perda de memória, as lacunas de convivência com o rastro, que escapam à narrativa de relações e afetos complexos na construção de uma identidade. Nesse contexto, onde a memória não tem dono, é retomada por associação irregular, há impacto involuntário no humano processual dando lugar a um cotidiano ligado à estrutura do fragmento.

Adriano propôs a partir do meu sonho a construção de material paralelo representando a digestão do outro sobre a mesma narrativa, o outro contaminado, uma terceira versão. A partir dessa proposta, foi organizada uma sequência de imagens por Diego como anexo complementar à cena, ampliando a experiência de criação.

Concluído o nosso “abril”, um mês de exercícios, tentativas, desistências e retomadas desse corpo coletivo, cheguei à cena final. Um recorte minimalista, onde sonho é sonho;  nada tão claro do que sua narrativa crua em plataforma audiovisual –  o mínimo, íntimo, é gerador de potência como o sigilo do inconsciente. Entre indas e vindas, enfim o depoimento. Michelly Scanzi

Escrita que não se lê

A proposta da cena do giz surgiu a partir da provocação daquilo que eu não gostaria de esquecer. Partindo da premissa de que perderia todas as vivências, todas as experiências, a proposta foi contar o máximo de lembranças e imagens da minha vida, para que, nos momentos de esquecimento, alguém pudesse me auxiliar, conectar-me novamente ao mundo real. Com essa idéia, a proposta foi justamente lembrar o máximo de fatos vividos ao longo desses 26 anos, anotando-os numa parede branca, numa espécie de grande diário onde, na medida em que eu escrevia, meu esquecimento já se abatia, tornando tudo branco e incompreensível aos olhos. Meu registro? Um nada. Leandro Menezes

Terceira Escuta

Minha primeira proposta tensionava idéias muito pessoais em relação à perda da memória. De um lado um desejo imenso de reter minha história, de outro a certeza de que nenhum método seria capaz de abarcar (daria conta das) minhas experiências. Juntei em uma caixa alguns objetos pessoais de valor puramente emocional e contava a um gravador o passado de cada um, mas, ao final, o que me restava como áudio era um silencio que tornava aquele item uma mera bugiganga digna de lixo. Já na etapa das improvisações diárias, percebemos que minha relação com a perda da memória, com o espaço e com os outros, tendia a criação de um universo particular, introspectivo, ávido por encontrar naquela situação uma maneira de expressar artística e criativamente minhas angustias. Interrompido esse processo, portanto, e ao retornar às cenas iniciais, Adriano me propôs um caminho diferente: manter uma espécie de “personagem” que foi se configurando durante minhas improvisações e apresentar um material artístico que fosse resultado dessa convivência diária com os outros “desmemoriados”. Porém, no dia em que eu apresentaria essa idéia, Adriano me chega com outra proposta. Na noite anterior, ele assistiu a um vídeo no youtube, uma entrevista com a performer Angelica Liddell que falava de uma maneira extremamente pessoal, quase constrangedora, do próprio trabalho. Assim, Adriano lançou-me o desafio: por que apropriar-se desse discurso? Daí por diante esse depoimento se tornou meu foco. Partindo da premissa de que fugiríamos de uma tentativa de mimese de Angelica, me apropriei de suas palavras e suas idéias, a fim de perceber como isso reverberaria em mim. Camila Evangelista

Gastronomia do esquecimento

Assim como os habitantes de Macondo que perdiam gradativamente a memória, houve uma  provocação no grupo: qual seria o impacto em suas vidas caso ficassem sabendo que perderiam a memória também. Assim, pensei no que eu poderia fazer para reter em mim as experiências adquiridas durante a minha vida, para que dessa forma escolhesse apenas uma, que seria roteirizada como uma espécie de diário de bordo.

Lembrei-me, então, que gosto muito de comida, não apenas para saciar o apetite, mas como forma de socialização, de afeto, de resposta à ansiedade, à raiva, etc.; enfim, o ato de comer se manifesta em mim de diferentes formas, e sob vários contextos.

Partindo disso, estabeleci uma meta: anotaria cada alimento que eu colocasse na boca, fosse sólido ou líquido, até que me encontrasse com o grupo e tivesse com eles uma última refeição, onde os integrantes poderiam acompanhar cada passo de minha experiência, desde a montagem do prato, até o ato de catalogar cada alimento (seriam distribuídas cópias das anotações anteriores). Por complicações nos horários e compromissos do grupo,a data de apresentação da minha performance mudou duas vezes, totalizando três dias de anotações.

Durante o processo me veio a seguinte pergunta: “Se eu estou perdendo a memória, como posso saber o que é de comer, e o que não é”? Sobre essa questão determinei algumas regras sobre como iria me alimentar ao longo da experiência: saberia o que era azedo, amargo, salgado, doce, líquido, refrescante e sólido. As comidas eram descritas por sua textura, cor e o sabor predominante que permanecia na boca; para os líquidos o mesmo padrão, mudando apenas para refrescante (como no caso da água, por exemplo).

Alguns episódios marcaram minha experiência, como no dia que cheguei em um restaurante self-service e, para não ter dúvida sobre o que comer, copiei as cores do prato de uma mulher magra que estava sentada em um mesa; ou então, quando estava escrevendo no diário de bordo, e vendo o grafite riscar a folha de papel, decidi comer o grafite e sentir seu sabor, para em seguida ficar impressionada ao ver que minha boca havia ficado preta;  outro dia,  enquanto esperava por alguém, vi um pedaço de graveto, e ao mastigá-lo  me arrependi de sentir a textura áspera em minha língua.

Ao longo dos dias, notei que o que me chamava a atenção eram as cores vibrantes  das comidas e a montagem dos pratos. Foi quando percebi que não ingeria quase nada na cor branca; pensando sobre essa cor, estabeleci um novo objetivo: a apresentação da performance seria comer algo branco, que estivesse na minha casa, naquele dia precisamente. No entanto, quando fui procurar, não tinha nada branco, além do Coador de Café Melita, que foi cortado em pedaços pequenos (para facilitar a mastigação), e servido em prato fundo, com garfo e faca. Para acompanhar a degustação, água gelada. Valéria Rocha



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